Há duas semanas, 100 mil cidadãos de Hong Kong, vestidos de preto, tomaram as ruas da cidade em protesto. A causa, entretanto, não tinha a ver com abusos dos direitos humanos por parte de Pequim nem nada similar.
A mobilização, organizada pelo Facebook, era puxada por muitas donas de casa fãs de astros de televisão, que gritavam “Queremos nosso sonho de volta!”. A revolta era pelo popular canal de televisão HKTV, que tivera rejeitado seu pedido de licença.
Depois de anos com apenas quatro canais disponíveis no território, o governo chinês anunciou que daria concessões para mais três emissoras. Três se candidataram, incluindo a HKTV. Os outros dois levaram, a HKTV não. O governo não deu explicações para a rejeição.
A notícia foi um baque para a população. O canal é conhecido por produzir conteúdo de excelente qualidade. Três anos atrás, o empresário Ricky Wong investiu 116 milhões de dólares e contratou 500 pessoas para criar uma empresa que passou a produzir séries e novelas inspiradas nos modelos americanos.
Ontem, uma reunião especial do conselho legislativo debateu sobre a abertura de uma investigação para apurar a decisão do governo de rejeitar o canal, mas o projeto não vingou ao esbarrar no forte lobby pró-governo.
Ao South China Morning Post, o principal jornal em inglês de Hong Kong, o parlamentar Andrew Leung Kwan-yuen, líder de negócios e alianças profissionais da casa, disse: “Nós esperamos que o governo aprenda com os seus erros. Ele deveria ouvir o povo. O povo deseja o poder de escolha, há um amplo consenso de que a programação atual da televisão é ruim”.
A rejeição da HKTV e a revolta da população pode ter sim, inicialmente, um fator cultural: constantemente os cidadãos de Hong Kong reclamam da baixíssima qualidade dos programas locais e que precisam recorrer aos shows japoneses, sul-coreanos e americanos.
Quando as únicas boas produções são impedidas de seguir adiante, a revolta se instala: por que piorar o acesso à cultura?
Mas não falta quem veja isso como intervenção deliberada de Pequim. É crescente o temor de uma influência cada vez maior do governo chinês na ilha, considerada uma zona especial desde 1997.
“Quem comanda Hong Kong? As leis, a polícia ou o chefe do executivo? Deveremos usar o mesmo tipo de papel higiênico designado pelo governo?”, disse Wong, conforme relatou oThe Atlantic.
Interferência chinesa
Em julho de 2012, na posse de CY Leung, chefe do executivo local, o discurso foi feito em mandarim, não no tradicional cantonês, a língua mais falada do território.
Não é desconhecido por ninguém, também, que Leung é fortemente alinhado com Partido Comunista Chinês. Sua posse foi marcada por um protesto de 400 mil pessoas
No mesmo ano, Leung tentou impor aulas de “moral e educação nacional” nas escolas. O ato foi visto como uma tentativa de lavagem cerebral nos estudantes para amarem o governo central. Após dez dias de protestos, ele aceitou adiar a decisão final sobre a lei.
Outro indício de uma pesada Pequim sobre a ex-colônia britânica: a falta de liberdade dos jornais e outros meios de comunicação.
Hong Kong sempre se gabou de ter uma liberdade de imprensa muito maior que a China. Contudo, muitos veem uma clara piora na situação dos jornais.
Em abril de 2012, a Associação de Jornalistas de Hong Kong entrevistou profissionais da área. O resultado: 87% consideravam que a liberdade de expressão tinha piorado no país.
A promessa de Pequim é que, em 2017, os sete milhões de habitantes da ilha poderão escolher por voto direto seu novo comandante. Entretanto, poucos acreditam que isso será feito realmente.
A força da filosofia “um país, dois sistemas”, que tenta manter a independência econômica, legal e política de Hong Kong em relação à China, já não é incontestável. A derrota do orgulho da ilha em forma de astros de TV é exemplo mais recente.
Fonte: EXAME