É melhor fazer uma canção?

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“Velô”, disco gravado por Caetano Veloso em 1984, trazia parcerias do cantor e compositor com nomes ligados à literatura, como Augusto de Campos, Wally Salomão e Antonio Cícero. A última faixa, “Língua”, era especialmente recheada de citações a escritores de variados gêneros, estilos e épocas: passava dos clássicos Luís de Camões e Olavo Bilac aos consagrados Guimarães Rosa e Fernando Pessoa, chegando ao contemporâneo Glauco Mattoso.

Mas, ironicamente, ao fim da canção, Caetano determinava a superioridade da música quando o assunto era o idioma português: “Se você tem uma ideia incrível/ É melhor fazer uma canção/ Está provado que só é possível filosofar em alemão”, decretava o baiano, que em 1997 lançou “Verdade Tropical”, uma espécie de ensaio sobre a cultura brasileira.

Fato é que nomes ligados à música têm se arriscado a jogar por terra a máxima do baiano. Da década de 80 para cá, Arnaldo Antunes, Adriana Calcanhotto, Chico César, Fernanda Takai, Rita Lee, Vanessa da Mata, Marina Lima, Gabriel, o Pensador, Lobão, Nando Reis e Roberta Campos foram alguns dos que ignoraram as pretensas barreiras entre os dois mundos, firmando praticamente uma tradição nacional no quesito. 

Neste 2018, a lista tem ganhado adesões. Os pernambucanos Otto e China estreiam no mercado literário sob a chancela da Impressões de Minas Editora. “Carlos Viaja”, de China, com ilustrações da cantora paulista Tulipa Ruiz, já teve lançamento em Belo Horizonte e em Recife. O de Otto ainda será lançado. Já o cantor e compositor catarinense Wado debuta com “Água do Mar nos Olhos”, assim como o mineiro Sérgio Pererê que, em abril, colocou nas estantes “A Morte de Antônio Preto”, de inspiração cordelista. 

Sócio-fundador da Impressões de Minas, Wallison Gontijo aponta os ganhos desse intercâmbio. “Quem vem da música ajuda a tirar do movimento literário aquela coisa engessada, da literatice. Tudo é texto: música, dança, imagem”, afirma. A declaração vai ao encontro dos versos de Manuel Bandeira em “Poética”, de 1930: “Não quero mais saber do lirismo que não é libertação”.

Para o músico China, o encontro com a literatura tem sido esse exercício de liberdade. “Na música você trabalha com a métrica, o livro te permite ir criando coisas”, diz o pernambucano de Olinda.

Permeabilidade. Ensaísta e professor de literatura brasileira da Universidade de São Paulo (USP), José Miguel Wisnik aponta uma permeabilidade entre música e literatura na cultura brasileira não muito comum em outros países. “É algo sintomático porque a nossa relação com a música sempre foi forte, temos diversos exemplos disso”, detecta ele, que também transita pelos dois campos, dividindo parcerias musicais com Tom Zé, Jorge Mautner e Luiz Tatit. 

E vai além: “Vivemos num país de baixo letramento médio, temos hábitos de leitura muito menores que os de nações próximas, como Portugal e Argentina. Pelo nível poético da nossa canção popular, não acho que ela roube espaço da literatura. Pelo contrário, ajuda a fomentar o interesse, segura as pontas”, defende. 

Wisnik cita dois nomes que, sem necessariamente tornarem-se autores de livros, fizeram a intersecção entre as duas áreas: Zeca Baleiro (que no álbum “Ode Descontínua e Remota para Flauta e Oboé” musicou dez poemas de Hilda Hilst) e Fagner, que tem músicas feitas a partir de poemas de Cecília Meireles (“Canteiros”, “Epigrama Nº 9” e “Motivo”), de Florbela Espanca (“Fanatismo”) e de Ferreira Gullar (“Traduzir-se”).

Riscos. Editor da revista literária “Quatro Cinco Um” – referência ao romance “Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury –, Paulo Werneck vê com bons olhos essa participação, mas faz ressalvas. “É legítima e saudável essa experimentação de linguagens. Cada um se garante como puder, uns se dão bem, outros acabam indo mal, mas estão saindo na chuva para se molhar, correndo riscos”, diz. “Claro que acontece da editora procurar o artista só por uma jogada de marketing, porque ele é conhecido, mas aí não vai dar certo, o fôlego é curto”, alerta Werneck.

Essa, no entanto, não tem sido a regra, ao menos na visão de Wisnik. “Os romances do Chico Buarque estão entre os mais importantes do nosso tempo. Arnaldo Antunes é um poeta de ponta. Antonio Cícero tem dois livros de densa filosofia. Caetano escreveu um dos ensaios mais relevantes sobre a nossa cultura contemporânea. O que chama atenção é a excelência dessas pessoas nos dois campos”, observa Wisnik.

Apesar disso, nem sempre a recepção da crítica vai nessa direção. Professora da faculdade de Letras da UFMG e autora do livro “Chico Buarque: Recortes e Passagens”, Ana Maria Clark lembra um exemplo marcante. “Quando lançou ‘Estorvo’, Chico foi chamado pejorativamente de ‘sambista que escreve’, o que não lhe desagradou, aliás. Tanto que ele compôs a canção ‘De Volta ao Samba’ dois anos depois de publicar o livro”, conta.